terça-feira, 3 de novembro de 2009

MERGULHADO NUM BURACO NEGRO

Aroldo Camelo de Melo



À volta vejo uma penumbra sem rastro
E cada coisa em baixo relevo
Se apaga como uma sombra fugidia.
Será necessário apelar para
Essas memórias recrudescidas?
Não direi nada
E o que poderia dizer, não diria nada.
Sei que ainda respiro
Porque meus olhos inda guardam
Sintonia com meu cérebro.
Todas essas cores pesam como chumbo
E nunca o opaco se fez tão imperativo.
A luz refletida no translúcido
Navega indefinidamente na escuridão da noite.
Astros se entreolham à distância
E tudo se turva na neblina cósmica.
Estarei mergulhado num buraco negro?

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

CANTO DO FILHO AUSENTE

Aroldo Camelo de Melo

Mote: Foi com dor no coração
Que deixei o meu lugar!



Não sei se noite ou dia
Quando deixei Pilõezinhos,
Minha ribalta, meu ninho,
Palco de minha alegria.
Até agora me extasia
A cigarra e seu cantar.
Hoje fico a matutar:
É formoso o meu torrão.
Foi com dor no coração
Que deixei o meu lugar!


Não, não sou desconhecido
Tampouco um ventureiro,
Aqui fomos os primeiros
A chegar sem alarido.
Fico muito comovido
Com o povo a festejar
Seu protetor no altar,
Ó que santa devoção.
Foi com dor no coração
Que deixei o meu lugar!


Se me chamam forasteiro
Na terra de nascimento
Sinto grande desalento
Sangro o corpo por inteiro.
se sou hoje um viajeiro
Correndo mundo a vagar
Saudades sinto eu lá,
Me doendo a solidão.
Foi com dor no coração
Que deixei o meu lugar!


Deixei atrás o perfume
Das flores dos meus vergéis
Saudades dos menestréis
Acendendo todos os lumes.
Pirilampos, vaga-lumes
Nos estrados a piscar
Tudo, tudo a acenar
Sublimando a amplidão,
Foi com dor no coração
Que deixei o meu lugar!


Era eu ainda infante
Quando tive que sair
O destino me fez partir
Em rotas perambulantes.
Velejei por rios possantes
Tendo Deus a me zelar,
Minha mãe pôs-se a rezar
Ajoelhada em oração,
Foi com dor no coração
Que deixei o meu lugar!


O homem quando se afasta
De seu mundo natural
Não é episódio banal
E se chora não é farsa,
É como se a desgraça
Caísse sobre seu lar.
Sua vida desmoronar
Ele vê na vastidão,
Foi com dor no coração
Que deixei o meu lugar!


Entre sonhos embalados,
Lendas e tantas quimeras,
Meu pai me narrou as eras
Do início do povoado;
E dos seus antepassados
Feitos me pode contar.
Era assim de admirar
Aquela sua devoção,
Foi com dor no coração
Que deixei o meu lugar!

Assim vou fechar o mote
Feito com muito carinho,
É aqui meu belo ninho
Que me trouxe tanta sorte.
Faço questão que anote
O que findei de grafar,
Já ninguém pode negar
O apego ao meu torrão.
Foi com dor no coração
Que deixei o meu lugar!

O QUE É SER POETA?

aroldo camelo de melo


Se sou poeta? O que é ser poeta?
Será aquele que canta, mesmo que seus arredores
Se façam surdos?
Será aquele que chora porque seu choro o liberta
De seus malogros interiores?
Será aquele que ri até sufocar suas próprias dores?
Será aquele que dorme e acorda sempre de porta aberta?
O que é ser poeta? Será um ser que busca a sublimação
Do pensar até evolar-se no horizonte?
Será aquele que se pensa semideus
Porque tem o poder de inventar um mundo só seu?
Será aquele que flutua com o amor
E o faz pousar onde bem quer?
Que é ser poeta? Será aquele que controla o tempo
E faz os astros caminharem coesos em suas rotas
E escancara do Universo as comportas?
O que é o poeta senão aquele que reverbera apenas
O cântico dos anjos que habitam os bacantes céus?
Se sou poeta? O que é ser poeta?

sábado, 31 de outubro de 2009

QUE LUZ DIÁFANA É TUA ENERGIA

aroldo camelo de melo



Que luz diáfana é tua energia!
luz que me alumia, alumia, alumia.
Durmo acordado nutrindo-me do teu fulgor.
O tempo gravou profundo tua aura em mim
E é sempre aurora teu horizonte carmesim.
Meu espelho não se turva de tua imagem
E tua voz me anuncia o firmamento.
Tudo me une a ti. És noite em leito de pétalas.
Tudo é místico em ti. Nunca és sol posto.
E até os nevoeiros são brisas que apascentam
quando te miro o rosto.
Revigoro-me e germino teu sangue efusivo
E se hoje canto essa inocente alegria
É porque esvaziaste os cântaros aziagos da minha vida.
Tu és pura e essa pureza me faz acreditar no amor.
Em coro, anjos bacantes cantam comigo em louvor
E os astros reverberam teu nome nos ceus!
Cleo, Cleo, Cleo!

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A DEMISSÃO DO GERÚNDIO

aroldo camelo de melo



Demitido o gerúndio.
De metido, o gerúndio vinha
Aparecendo muito. Roubando a cena.
Numa canetada, sem pena,
Demitiram-no!
Estava incomodando.
E vai estar incomodando ainda por muito tempo.
O gerúndio sempre aludiu ação,
Mas nos últimos dias
Gerúndio passou a ser enrolação.
E era assim
Homens, mulheres e crianças gerundiano:
Vou estar dormindo,
Vou estar falando,
Vou estar comendo.
Vou estar providenciando.
Ainda vão estar prevaricando com a língua,
Mas agora é ilegal,
Pelo menos no Distrito Federal.
A bem da verdade, o gerundismo vinha abusando.
Tornou-se impreciso, modismo abusado.
E por decreto, foi cassado.
Carecia de uma providência. E cassaram-no.

MEU CANTO DA LUZ E DO ESCURO FALA

aroldo camelo de melo



meu canto da luz e do escuro fala,
fala dos temperos e destemperos
e diante de insultos, grita, não cala
e tece e acontece sem exagero.

e sem medo ateia fogo e fere a ferro,
se necessário fogueira ardente,
mas se basta languidez sem berro
meu canto se faz paz consente.

sente o medíocre respirar da vida
que se escapa por entre valas
e aquela cantiga jaz desflorida,

sem perfume, queda e resvala.
eis que sem voz, meu canto é rouco,
um alarido que assusta moucos.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

FANTASIAS DA JUVENTUDE

aroldo camelo de melo



Pelas tuas curvas senoidais,
Pela tua arquitetura robusta,
Sem fissuras corporais,
Pela lisura de tua pele,
Pelo sopro de tua voz,
Tudo é um emergir de um vulcão,
Tudo é transbordante, é erupção.
Tudo é vento que espalma
A seiva da candura,
Tudo é dança esfuziante
No salão oval de minha vida,
Tudo é perfume inebriante.
E envolto nessa aura multicor
Sou um arco-íris cintilante
E minhas madrugadas
São sonhos anuviantes
E o sol cálido a surgir na alvorada
Deita-me lúcida energia
E me traz, em plenitude,
Fantasias delirantes da juventude!

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

E NA NUDEZ O LENÇOL NOS ENVOLVE.

Aroldo Camelo de Melo


E na nudez o lençol nos envolve. É noite fria.
A noite semeia sonhos. O amor é erva alucinógena.
Ares oníricos e nossos corpos dançam. Se enlaçam.
O som noturno é cálido. Apascenta o tempo.
Quem além de nós será capaz de descrever esse momento?
O açoite do amor é veemente. Intenso.
Floresce a alegria em plenitude. Anjos bacantes cantam.
Será sempre assim. Porque assim se fez.
Infinito desde o primeiro instante.
Sem promessas. Sem essas. Sem esses.
À luz de velas que queimam na noite fria
Os desejos se iluminam. Os olhares tremem.
Mas é na penumbra que os amantes se encantam.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

MINHA TERRA

aroldo camelo de melo


O sol derrama seus raios
pelos contrafortes da Borborema,
contrafortes que te cercam, te abraçam
minha terra, meiga morena.
Meia dúzia de casas de tanta história
que meu pai me ensinou a guardar
bem dentro, cá na memória.
O espocar de fogos no ar
nas festas de São Sebastião
trazem lembranças do meu tempo de menino
vibrando, alegrando meu coração!
Hoje te vejo, minha terra,
meu povo está velho, minguando,
os novos partiram e só te visitam
de vez em quando,
mas ainda sinto o cheiro de flores
no ar que respiramos.
Vejo doçura no olhar da criança
que se debruça no parapeito da janela
ao me ver passar,
sinto amizade nas ásperas mãos do camponês
que me cumprimenta.
Cadê Cambimba, Babau,
Jorge, Augusto, Genival, Benedito Bacurau?
Venham todos cá,
vamos tomar banho na cacimba do Cajá,
vamos roubar banana de Severino Cunha. Que vergonha!
Vamos, enfim, nos embrenhar nos verdes canaviais
e reviver a liberdade,
a liberdade que hoje não temos mais!
Por que fugir de
Tuas garras que me prendem,
Mas não me ferem?

DO POETA

Aroldo Camelo de Melo




Do poeta, o fingimento
É o lado mais sincero.
Fernando Pessoa usava pseudos
Pra mostrar seu mundo verdadeiro.
Seus versos iam por inteiro
Revelando sua sinfonia interior.
Do completo teor de sua escrita,
Seus profundos murmúrios,
Só a natureza escutava.
Seus passos acendiam o farol luso
Com energia de fantasmas
E até hoje pelas ruas embriagadas
De alguma cidadela empoeirada
Ou subúrbio metropolitano,
Qualquer neófito poeta
Em tom de desafio dirá:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

OS DEUSES DORMEM


Dormem os deuses nas savanas
Enquanto o leão descansa no oriente.
Nas manhãs, já ao alvorecer, o leão
Lança suas lufadas mau-humoradas,
Lambendo com sua língua cáustica
O dorso da terra desnuda.
Na esplanada, encoberta de tênue manto,
Escutam-se uivos de lobos famintos,
Como o retinir dos sinos nas capelas,
Naquele desolado mundaréu.
O mundo é um campanário reticente
De onde se escuta o dardejar das enxadas
Ao lavrar a terra seca, mas nunca estéril.
Um grupo de mulheres caminha
Por entre cactos, cardeiros e xiquexiques
Sob olhares de infâmias
E perjúrios dos deuses preguiçosos.
Assiste-se ao descaso dos céus
Sob a cumplicidade de estrelas vadias.
E assim, incapazes de reduzir as cinzas,
Velhos cancioneiros, absortos, com
Seus aboios e cantigas, ainda exaltam
As migalhas ofertadas pela natureza
E exclamam, ébrios de fé:
“Que Deus seja louvado”!

GUARÁS

aroldo camelo de melo


Guarás sobrevoam meu crânio.
Povoam minhas lembranças.
Tingem de púrpura minhas retinas.
Colorem meu poema.

Plasma esparramado no espaço.
Com plumas vermelhas guarás tantos
Pairam no meu céu, sob um manto
De vidro cerúleo, no compasso

Lilás de um geométrico cenário.
Guarás pulam de galho em galho,
Na alegria de sugar o nectário

De um mundo puro, imaculado,
Harmônico, sem ato falho.
Árvore ornada. Um campanário.
CORAÇÕES
Na caixa torácica, pulsante
Em movimento ininterrupto,
Sem solavancos, mas abrupto
De quando em vez, lançante.

Sensível a intempéries diversas
Se divide entre razão e emoção,
Cadencia a vida o coração
A bombear a hemoglobina submersa.

Quando a luta é vã, adversa
Na busca de nobres sentimentos
O coração se enche de amargura,

Mas quando fervilha a ternura
Transborda em contentamento
E olha o abjecto às avessas.

CABEÇÃO

aroldo camelo de melo



Esfera ovóide de dimensão singular
Carregava sobre ínfimo pescoço.
Na aparência, desenho absconso
De um ser. Do espaço estelar

Provindo, talvez. Que gruta é seu lar?
Provém de uma longínqua nebulosa,
De gás liquefeito, pavorosa
Ou é aqui na Terra o seu lugar?

Sábias são as leis da natureza,
Pois equilíbrio em tudo busca.
Se aqui é escuro ali a luz ofusca.

Tudo envolto de grande sapiência.
A ele dotou-lhe de inteligência
Ao invés de fútil, etérea beleza.

GIRASSOL

aroldo camelo de melo




De Apolo, uma jovem viu-se enamorada.
A doidivanas exibia-se. Sem formosura,
Esmaecida, lânguida na busca das alturas
Quedou-se, sentindo-se menosprezada.

Fugindo de tudo que lhe circundava
Verteu lágrimas por nove dias e noites,
Sofrendo todas agruras e açoites
Por Apolo, cruelmente abandonada.

Outros deuses, usando de piedade,
A transformaram em bela flor,
Imagem e semelhança do seu feitor..

Naquele heliotropismo comovente,
Ela, Clítia, cruzava os céus, veemente,
Mirando, insistente, sua Majestade!

NESSE COVIL DE LOBOS REINA O APOSTATO

aroldo camelo de melo



Sob o escudo do medo. A geração atual.
Doença contemporânea. Liberdade sitiada.
Enclausurada em sua própria morada.
Sem sonho. Sem fé. Sem crença. Tudo é irreal.

Mesmo com harry potter, a fantasia é fluida.
O invisível pode mais. Preço alto pelo conforto
solitário. De leis mesquinhas se faz o individualismo.
Assim se inicia a decadência. A derrocada, única saída.

Sempre sob perigo iminente. O cálice oferecido
pode ser cicuta. A suspeição é um caminho
de mão dupla. Tudo que é leal jaz esquecido.

A solidariedade é substantivo abstrato.
Altruísmo, abnegação não encontra seu ninho
pois nesse covil de lobos reina o apostato.

CATHYLEA

aroldo camelo de melo


Aconchegante. À sombra, abraçada
Aos galhos. Com pouco se sacia.
Cativante. Cathylea embriagada.
Exibe pétalas como seda macia.

A natureza, agradecida a tanta beleza.
Brota em tronco simplório. Cálida, feliz
Se asas tivesse, voaria como os colibris.
Doce visão. Mesmo a olhos sem destreza.

Na fluidez do deus Áton, viceja
Ar e luz, seu combustível motriz.
A seu hóspede não atormenta,

De phrana, essência divina, se alimenta.
Feitos do Eterno. Matizes sutis.
Cathylea, em ti a fonte do amor goteja.

RESISTÊNCIA À ADVERSIDADE

aroldo camelo de melo


A terra e seu enlevo. Com as raízes, um pacto.
A natureza é pródiga. Mesmo se falha o céu,
No chão calcinado, brota o verde cacto.
A paisagem se colore. Mundo sem labéu.

Em cada palmo de terra uma palma nasce
E se desabrocha em doce flor
Vermelha como o ventre do sol.
O que frutifica é néctar do amor,

Ungüento perfumado que se espalha
Pelas frestas, fendas e labirintos
De pedras. Tudo era antes mortalha

Agora, com um toque ressurecto,
Revivifica como se um truque, mágica.
Traduz uma certeza: Deus não falha.
QUE DEUS TENHA PIEDADE


Onde tudo se ufana. Às voltas pelo avesso.
Fumeio a poeira das entranhas. Irrita-me a laringe.
Pululam sofismas. Desvendo esfinges,
Violo sacramentos e encaro faces metálicas.
Num exercício bucal mastigo lagartos
E o manto frio da noite me incomoda.
Tudo é arame farpado. Faço-me contorcionista
E me desvencilho da iniqüidade que me rodeia.
Ali Nietzsche é deus.
Mentiras dos ímpios viram profecias.
Pensam que planam alturas.
Fazem seus voos de cordilheiras e se arrebentam
Na planície descampada. A luz é pífia nos
Olhos vesgos dos que se pensam gênios.
O poeta atordoado pousa numa estrela
E exclama: “que Deus tenha piedade”!
Vade retro Nietzsche e seus séquitos!

MORTICÍNIO

aroldo camelo de melo



Cabul, Cabul, Cabul...
Choviam bombas
Incinerando o inferno...
Um céu cinza apagava o sol
Amarelo de medo.
Campos minados
Decepando olhares
Pernas e orelhas
Um choro doído
Estampado no rosto
De uma criança desnuda.
Ruínas vazando retinas
E ao longe, fumaças, destroços,
Crucifixos, covas rasas
E os sonhos da noite
Invadidos por morcegos, vampiros
Espreitando rajadas de sangue
Dos fuzis de última geração.
No alto do Himalaia
Monges tibetanos
Sonolentos
Na paz dos seus jazigos
Esculpem o equilíbrio
De mente e corpo
Enquanto corpos de homens e mulheres
Embalam canções ianques
E o mundo dorme à beira do precipício.

EU QUERIA UM MUNDO ASSIM

aroldo camelo de melo


Eu queria um mundo assim
Sem quê nem porém,
Como convém a um mundo sem conflito.

Eu queria ver meus sonhos
Refletidos no espelho da vida,
Iluminados pelas luzes da ribalta
E tudo não passasse
De uma face de criança peralta.

Eu queria viver num mundo
Sem maldade e sem ambição,
Em consonância com as leis da natureza.

Eu queria um mundo de singeleza
Onde todos pudessem dormir
Sem inquietude, sem pavor
E o acordar fosse só prazer
no enleio do cândido amor
E o poente um risonho anoitecer.

Eu queria um mundo assim
De santos e pecadores,
Mas sem atos que falem
De sangue derramado
Ou de honras ultrajadas.

Eu queria um mundo repleto de poemas
Que exaltassem o céu, o sol, o vento,
A natureza, o firmamento
E que em tudo pudéssemos ver
O vulto insuspeito de um ser
Que nos permite
O prodígio de viver – DEUS!
ISSO É QUE É MODERNIDADE.


Isso é que é modernidade.
Não é que eu vi
Uma aranha tecendo sua teia
Com fio sintético.
Patético!

EMUDECIA

aroldo camelo de melo



Emudecia. Silenciava em arrepios.
Palavras morriam
Na ponta da língua paralítica.
Pálido, papel pictórico,
Em fogo me ardia.

Como dizer poemas e concertos,
Se, embora dúctil, minha verve
Refluía, engolida por um dilúvio
Imaginário de temores.

Aquele andar deslizante
Mesmo sobre pedras e cascalhos,
Aqueles meneios e trejeitos
Eram relâmpagos em cascata.

Luzes prateadas
Suplicavam odes à deusa
E minha língua de chumbo
Balbuciava palavras inaudíveis.

Tantas orações bocagianas
Fervilhavam minha mente
E aquele metralhar silencioso
Suicidava meus pensares.

ENERGIA DA FOME

aroldo camelo de melo



O verde inunda o campo.
Homens cortam cana.
De arrebol à arrebol,
Queimam a cara
No vapor do sol.
Caldeirões destilam
Etileno.
Usinas zunem,
Motores roncam,
Panelas tinem,
O tempo treme,
Barrigas barulham,
Ares arrulham,
A fome geme.

VENDEDOR DE CAVACO-CHINÊS

Aroldo camelo de melo



O vendedor de cavaco-chinês
anda um, anda dois, anda três
quarteirões e não vende um.

Eu o acompanho na rota
e o vendedor de cavaco,
impávido, não denota
a menor frustração.
Vai de porta em porta:
“bom dia, dona Maria,
bom dia senhor João,
vai querer o cavaco?
Não quer? Tem nada não!”.
Seu largo sorriso
é pura satisfação.

“Se hoje não vendi,
amanhã, domingo, é batata.
Depois da missa a meninada
esvazia a lata”, diz.
Nunca mais vi
o vendedor de cavaco.
Nenhuma vez!
Será que não é mais tempo
De cavaco-chinês?

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

POETA CONTEMPORÂNEO

aroldo camelo de melo


Sou poeta
De uma nau profana
Sou dessas águas turvas
Navego por ondas de um mar
vagabundo
Sou poeta de um mundo
De poentes escuros
Sou poeta
Desses ares impuros
Dessas vagas aziagas
Sou poeta
Desses tempos de mistérios
de vitupérios
E sem sonhos
Sou poeta do hipnótico
E do caótico
Sou poeta da superfície
E do subterrâneo
Sou poeta contemporâneo!

NA MINHA CIDADE TINHA UM RIO

aroldo camelo de melo


Na minha cidade tinha um rio
De margens sujas
Chafurdada por cachorros,
Cabritos e meninos.
Aquelas margens eram
Templo dos caramujos,
Do sujo de porcos fuçando.
Eram também nosso teatro,
Nosso Coliseu.
Naquelas margens
Se paria do lodo e da lama,
O bredo que estagnava a fome.
O rio, grávido de miséria
E de alegria, já não fluía
E no passo lento, preguiçoso
O rio se arrastava qual cobra combalida
E nas suas poças encharcadas
Bebia o burro cansado,
Bebia o cachorro vadio
E todos os meninos
Bebiam o suco da esquistossomose.
Em roucas vozes,
O rio implorava por chuva
Que lavasse suas feridas
E limpasse suas fétidas veias.
Vinha a cheia
E o rio respirava
Um alento de vida
E suas unhas roídas
Mastigavam o osso
Da travessia.
Mas o rio já não ia
Além dos limites da cidade.
O rio agonizante inda fecundava
Esqueletos que sangravam
Na desova em suas cabeceiras.
Na minha cidade tinha um rio...

E QUANDO ARDE O SOL

aroldo camelo de melo


E quando arde o sol na costa nua
E treme a terra e a terra balbucia dores,
Escutam-se vagidos e clamores
Da seca que calcina e extenua.

Nem o refrigério das névoas vespertinas
Quando o planeta Vênus vai nascendo
Ofusca o calor do sol esmaecendo
Na tarde rendida à fúria repentina!

Raios vermelhos refletem no arrebol
Anunciando mais um dia de lamúria,
Nuvens magras, ressequidas e espúrias

Vagam no anil do espaço sideral.
Sopram fracos ventos agoureiros.
Escapam da morte apenas os guerreiros!

INFANTE VIAJOR

aroldo camelo de melo



Como um infante viajor, sem paradeiro,
A peregrinar pelos desertos, tal beduíno,
Abraça rotas, singra mundo inteiro,
Busca ares azuis no acaso do destino.

No dançar inquieto dos olhos do menino
Vê-se alegria e lampejos de esperança
E no irresoluto de um tempo pequenino
Navega águas revoltas e não se cansa.

Ave migratória algures faz seu ninho
De gravetos e secas adornagens,
Na humildade escreve seu caminho
Trilhado d’agruras e rudes imagens.

Sou eu este ébrio em desatino
Que Homero não narrou sua Odisséia,
Vate a viver de fulgores repentinos,
Luzes que lhes chegam nas idéias.

NO CREDO, A ACEITAÇÃO DA MORTE

aroldo camelo de melo



Mundo dos que se foram. Desconhecido.
Nunca houve elo depois do aceno de despedida.
Rua sem nome. Casa sem endereço.
Via de acesso intransitável.
Sequer se sabe se existe via.
Sem ponte, sem margem,
Sem fio de meada. Sem alegoria.
De retorno, só nebulosas aparições,
Imagens dolosas. Parábolas intraduzíveis.
Frágil mente humana,
Ninho de embusteiros.
Ali a confusão faz morada.
Campo ilusório. Luz de plenilúnio.
Quem se atreve a acender
O farol da verdade?
Nestas hostes, a realidade
É lança perfurante.
Destes mistérios
Falam línguas estranhas.
Na morte não tem céu.
Embora santo sejam os que partiram,
É como se auto-absolvessem.
A promessa da ressurreição é o mistério da fé.
Só assim, bebendo da fonte deste
Credo, é que se aceita a morte.

AS PEDRAS SENTEM E CHORAM

Aroldo Camelo de Melo




certa feita pediram a um poeta
que com palavras desse vida a uma pedra.
o poeta disse: não me é impossível,
mesmo que eu não tenha nada de divino.
e se me chamam demiurgo deve-se, talvez,
aos meus ares de doidivanas sem atino.
mas esses seres inanimados já são possuídos de vida.
nós é que não somos capazes de entendê-las.
não ouves o ribombar do seu pétreo silêncio?
não vês as lágrimas cinzas que lhes escorrem
pelas suas sombras tímidas quando nós não
as cumprimentamos?
e os grãos de areia que se desprendem do seu dorso
ou as fissuras invisíveis do seu corpo
não são sinais de que elas também são frágeis
e temem a broca do predador?
não se engane, disse o poeta,
há mais sangue jorrando nos veios de uma pedra
do que sentimento no coração de um usurário.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

COVARDIA

aroldo camelo de melo



Em tudo a quietude. Vazia.
A denotar silêncio conspirador.
Bocas fechadas. Inconscientes.
O peso a esmagar pensamentos.
No nascedouro. De pouca valia
A língua. Inerte. Solerte só o medo.
Opaca é a cor preferida dos inodoros.
A covardia conserva o blefe.
Tudo é festa no reino da hipocrisia.
Palhaço é a fantasia. E assim o despotismo
Se cria. O olhar pelas frestas
Escurece a alma. Sem luta o homem
É fim de linha. Partida. Só o túmulo
Acumula azémolas sem fé.
Em tudo, vazia é a virtude. Pobres de Jó.

MUTISMO

Aroldo Camelo de Melo



Uma penumbra nubla os ares de caterva.
Templo plúmbeo. Sombras calcinantes.
Um desvario que inebria e que soterra.
Tudo envolto num mutismo alucinante.

Irredutivelmente imóvel. A paralisia
emudece o tempo. O obscuro se manifesta.
Já não se escuta o marulhar nas gretas.
De unânime só o descompasso. Se asfixia

A luz. Tudo é detrito, sujo abjeto.
Direto ou indireto, não pulsa o objeto.
E se pulsa, é algo da onda ao fragor.

Desejos refratários. Reflui o fulgor.
No todo, em nada se espraia a lavra.
Quedam-se exangues as palavras!

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

ODE A NERUDA

aroldo camelo de melo


O azul dos Andes, Neruda,
Me dizem muito de ti.
A transparência das cordilheiras
Deixam-me ver teu rosto.
As estrelas dos céus da América
Piscam e descrevem teu nome.
Não saberão os pássaros pantanosos
Cantar teu nome?
Saberão sim, Neruda, pois mesma
É a tua linguagem, tua retórica.
São teus versos heróicos, Neruda,
Pois dizem dos peregrinos dessas plagas
Que não se cansam de espalhar ares coloridos.
Sei que não te vanglorias, Neruda,
Do néctar que são teus escritos.
Os desnudos sentem-se em trajes de black-tie
Ao se embrenharem pelos meandros
De tuas luzes poéticas.
As madrugadas das terras de Bolívar,
Dormem embaladas no ritmo liberto
Dos teus poemas e sonham com a redenção.
Mesmo que caminhos torpes, labirintos de vertigens,
Sejam a marca da caminhada, não nos amedrontamos,
Pois o teu manto de luz será um clarão a nos guiar.
Neruda, a América te saúda!

NEM TODO ESPOCO É FESTA

Nem todo toco é torto.
Nem todo troco é pouco.
Nem todo taco é reto.
Nem todo mudo é rouco.
Nem todo poeta é louco.
Nem toda calvície é testa.
Nem todo espoco é festa!

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

No aniversário de sua morte
aroldo camelo de melo



Fala-se de morte morrida,
Não sei bem ao certo.
Só sei que o sinto por perto
Como se ele em vida.

João Cabral de Melo Neto
Morreu? Noticia dolorida.
Em nova vida explodida
Explodirá o seu concerto!

O mundo inteiro irradia
Sua luz tal que divina
Agora Maria e Severina
São velas na ventania.

Na morte e na vida
“Morte e vida Severina”
Será seu poema melhor.
Encantou-se, João, na caatinga,
Entoando belas cantigas
Afinadas em dor maior.

CHORA ÁFRICA

aroldo camelo de melo




Abaixo da linha do Equador.
Entre os trópicos.
Paralelo de fome e dor.

Onde o sol ferve
Em graus bem acima de zero.

Campos tórridos e banhados
Em sangue. Quem implora?
Paisagem desolada.
Sozinha a mãe África chora.

Sofrimento explícito. Fratura exposta
Nas ruínas. A terra se esvai, sangra.
Ninguém a se nomear tutor.
Desgraça corriqueira. Nada é mais horror!

Entre mortes e seus escombros,
Avalanche escatológica.
De onde emana tétrica ordem
Em sua perversa lógica?

O mundo lança olhares meros.
É a ordem do hodierno.
De nenhuma valia, vociferos.
Só a parúsia a livrar esse inferno!

AQUI REINAVA A NATUREZA

A lagoa era bela. De águas mansas.
Povoada por aves pernaltas e aves
cantantes. Concerto a ceu aberto.
Murmurâncias de pássaros em sinfonia,
Saracuras e pavões com suas caudas
Multicoloridas. Em algazarra, corria
Um filhote de lobo-guará
Treinando seus dotes de predador.
Gaviões bailavam aos ceus em suas
Mirabolantes rotas, em seus mirabolantes veus.
Soberba, a natureza exalava aromas,
Abrindo os braços, suas portas,
Enquanto se ouvia uma girândola de vivas
De anjos celestiais em seus litúrgicos trajes.
Nada ousava rescindir aquele equilíbrio.
Quem capaz de tal ultraje?
Nada. Ninguém. Talvez o homem!

terça-feira, 6 de outubro de 2009

NA INTERSEÇÃO O MISTÉRIO DA UNIÃO

Gozar de tua gula. Me completo até a medula.
Amanheço envolto em mistério. Saciado.
Em ti completo. Em todos os dialetos, comungamos.
Dos mesmos salmos nos alimentamos. Não é só carne
Que sacia a fome. Também do elixir do espírito,
A energia que nos funde. Em uníssono nossa canção se faz.
Se o chão teima em ser inferno, exorcizamos.
E o céu é nossa paz. Pedras não faltam no caminho,
Mas nossas mãos transformam paralelepípedos
Em esculturas. O bronze é ouro, pois a ternura
Pode muito mais. Tudo a um toque mágico da mão?
Não! Mas é na paciência que celebramos a arte
De, no recíproco, nos suportarmos a nós e aos outros.
De mundos díspares, na interseção encontramos
O equilíbrio. Eis o mistério de nossa união.

CHUVA DE AMOR

O calor incandescente da noite
Anunciava chuva. E choveu.
O sol não apareceu na manhã.
E a chuva que caía era folgazã.
Chovia pingos de felicidade.
A terra escancarava as entranhas
Acomodando em seu seio
O líquido que escorria do céu.
Não me levantei. Ali fiquei.
Ali, buscando na amada o seu calor.
E a manhã foi de intensa chuva de amor.

MINHA GENTE

Numa manhã clara de verão
gente calada, mãos calejadas,
enxadas, marmitas, desditas
eu vejo o rústico agricultor brasileiro!

Eu ouço o choro do menino faminto,
rasgando a goela de tanto gritar,
sapateando com os pés
numa poça de lama no piso de barro preto.

Eu exalto a tua fé, a tua estúpida
e impressionante fé, caboclo,
a fé na tua enxada e terra fértil,
que embora em se plantando tudo dá,
se cansa e sem a chuva começa a reclamar
e ainda o sol canicular, abrasador,
impiedoso, mudo espalhando o medo, o terror.

Eu vejo adiante, num contraste estonteante,
as lindas campinas verdejantes
que se cobrem, descobrem lá no horizonte sem fim
e sinto assim o aroma das flores
que enfeitam, embelezam altares, andores
nas festas matutas, astutas.

Eu ouço o tilintar das enxadas
anunciando a hora da prece
numa manhã clara de verão
e murmuro, rogo, vocifero uma oração
em louvor àqueles gigantes, heróis
de se oprimem, comprimem
produzindo alimento pra todos nós.

É lindo o espetáculo vibrante
do gorjeio harmonioso das aves brejeiras
e me sacudo olhando por sobre as palmeiras
um bando de pássaros cantarolando felizes.

Ao longe, já ao cair do sol todo calor,
gente calada, mãos calejadas, enxadas,
marmitas, desditas
eu vejo o rústico agricultor brasileiro!

QUE VENHAM OS NETOS

Rua da felicidade é meu endereço.
Nunca me esqueço...
Sei muito bem o nome do meu amor.
Nunca me esqueço...
Meu amor me espera na varanda
Com perfume de lavanda.
Os filhos já estão em ponto de partida,
Não esperarão o ano bissexto .
E logo virão os netos.
Que bom que venham os netos.
É um sonho manifesto.
Que venham os netos;
Os presentes, filhos, que lhes neguei,
Lhos darei, aos netos...
Que venham os netos
Com seus rufar de tambores,
Com seus odores e euforias
Que a vida já reclama uma pitada de anarquia.
Que venham os netos
E que eu esteja vivo para recebê-los
Com iogurte e mingau de aveia.
Não importa o descabelo.
Melhor do que envelhecer com a
Cabeça no travesseiro ou o corpo
No sofá da sala de estar.
Que venham os netos
Para que eu não morra
Sem bússola e sem poema.
Que venham os netos.
Com seus sorrisos e choros
E que gritem em coro: vovô.

SE DE REPENTE

se de repente
meu poema
todas as línguas falasse
e continentes voasse,
seria uma mão que acena,
seria o planar de uma pena
ou folha seca livre a vagar
descrevendo círculos no ar.
e se de repente,
numa rota colidida,
meu poema caísse
em terras desconhecidas,
seria fértil à vida?
REVIRAVOLTA


Que de tão saciado se fez fastio.
Jamais soubera o significado do não-ter.
Perder: verbo nunca conjugado.

O olhar por sobre os ombros explicitava
a supremacia. Pose de Alexandre - o Grande.

De repente, silencioso, o desmoronar
do Nababesco. O cupim produzindo ruína.
O presente não se alimenta do que se pensa.

É a vida a reinventar seu destino. Não é à toa
que se desmaterializa o torpe. O corpo sangra
e rui pelas rupturas. Nem estátua de bronze
se perpetua. Tudo é perecível.
O infinito é Deus. Só.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

POEMA DE UM BARNABÉ

Fico longe das vidraças
Da sala do meu trabalho.
Meus olhos esbugalho,
Pelas frestas eu quero ver
O sol com sua graça,
Lépido, ao entardecer.

Minha tez encardida
Revela horas recolhida
À essa luz artificial.
Não é nada natural
O ar que eu respiro,
É só ácaro que aspiro
Infectando meu pulmão.

E assim triste e apagado
Tenho o rosto retorcido,
Semblante mal-dormido
De abatido empregado.

Quero ver o sol brilhar
Sem tela e sem tapume,
Quero sentir o seu lume
Refletindo sobre o mar.

Sou cativo desse vagão,
Dessa gaiola refrigerada,
Mas minh’alma agoniada
Tem um poético coração.

Ó Deus, fazei-me sonolento,
Nevai-me o sangue das artérias,
E apascentai minha matéria,
Dai ao meu espírito acalento.

Trazei-me prazeres vãos
Pois vivo aqui soterrado,
Melancólico, degredado
No estreito dessa prisão!

VENTANIA DE LETRAS

Fui construindo meu objeto letra por letra,
sem pressa, sem projeto.
Sempre artífice de laudas repentinas.
Nunca abjetas!
Meus passos não arquiteto. Nem meus horizontes.
Só sei que é dia quando sinto o sol.
Do alto do monte é que vejo a extensão
da planície e seu relevo.
Assim sem me dar conta, trabalhei meus versos
Como quem constrói um castelo de areia:
Fantasia a toda prova, fotografia sem moldura,
Revelada, mas não retocada.
De letras e laudas surge um livro
Ávido por leitor que o critique,
Rasgue-o ou o rabisque.
Mas uma coisa, caro leitor, eu peço:
Não emudeça como espelho cego.
Quero um rosto. Seja um rosto enrubescido
De cólera ou de semblante enaltecido.
Dos meus escritos que se faça
A compreensão de cada um.
As nuvens nascem e se desmancham a cada segundo.
Tudo embaralhado numa ventania de letras.

ACODE-ME BAKUNIN

Da primeira vez em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...
Mário Quintana


A cada segundo me assassinam.
Quantas idéias não me abortaram?
E, descaradamente, ainda me cobram
Um largo sorriso. Como? Se até
Do choro, as lágrimas confiscaram.

Essa minha sede de liberdade
É uma afronta a quem se diz senhor.
E se grito quando se impõe silêncio
É um desrespeito a quem se quer feitor.

Salve-me, Senhor Deus! Acode-me, Bakunin!
Oh! Desconexo entulho autoritário
Por que teimas em me tornar triste e solitário?
Livra-me de tantos naufrágios, Deus!
Lança Tuas benesses sobre mim.

DESENCANTO

Eu vi o tempo despido. Eu vi homens
Iluminando a noite à luz de candeeiro.
Eu vi virgens debutantes em seus
Vestidos azuis e asas de anjos
Afogarem-se em desejos vulcânicos.
Eu vi o tempo sem eletricidade
E sem magnetismo. Eu vi o mimetismo
Se configurando na essência dos homens.
Eu vi homens montados em burricos,
Atravessando o tempo, enquanto pássaros
Voavam nos céus vomitando bombas.
Eu vi crianças sem infância
Mendigando o pão calcinado.
O chão imundo à sua volta
E a desgraça abismada com seus feitos.
Eu vi gerações inteiras se perderem
Na maratona do tempo
Sob o império dos alucinógenos;
Eu vi o avanço tecnológico,
Sem piedade, desempregando trabalhadores,
Jogando-os na vala comum do desespero;
Eu vi a chegada triunfante
Da era cibernética, saudada com efusão,
Apontada como panacéia para todos
Os males da humanidade.
Eu vi riquezas emergirem do nada.
Eu vi crescer a poupança de poucos,
À custa da desventura das multidões;
Eu vi o triunfo do capitalismo selvagem.
Eu vi a explosão da miséria em favelas bombardeadas
Por ilhas de prosperidade e mesa fausta.
É latente a inquietação progressiva
Das classes esmagadas pelo peso da opressão.
Nesse compasso chega-se ao sombrio cadafalso.
Eu vejo os homens à beira de um iminente colapso,
Sem tempo, sem tino e sem se dar conta
Do insano estrepitar das máquinas.

INFINITO AO ALCANCE DA MÃO

Buscar nuvem como sustentáculo. Construir castelos
De areia. Será falso o chão onde finco os pés?
O vácuo é inanimado. Templo sem rosto. Cadafalso.
Tudo no cosmos é imensidão. Esferóide na forma.
Neste céu inerte a alma não se encaixa.

Lapidar o tempo é preciso, em compasso!
É preciso burilá-lo.O tempo dirá se princípio ou fim.
Por que pressa se a viagem é infinita?
O torto é o caminho mais curto entre dois pontos?
De voltas infindas se cercam trajetórias longas.

É pacífico meu convívio com abismos e ruínas.
Por ventura o acaso constrói existência duradoura?
Meu corpo é poeira, barro que só o Oleiro faz arte.

A caminhada só faz sentido se mira Tua morada.
Não sei Teu endereço, mas uma fé me guia. Destarte,
Tudo ficará em órbita até que se aviste a eternidade.

DESCONHECIDO

Se me projeto no tempo
Me sinto luz refratária
E nas cores do passado me apego
Antes que meu rastro se apague.

Valho-me do meu retrato
Que mesmo em preto e branco
É uma pista irrefutável do que sou.

Navego por mares de abismos
E lanço minh’alma nos vales escuros.
Vã é a tentativa de
Desvendar o além-mundo.
De ruas estreitas e túmulos calcários
São os labirintos da mente.
Melhor não transpor o céu
E viver no deleite da ilusão do Éden.

GERAÇÃO DE BONECOS TELEGUIADOS

Ó geração de bonecos teleguiados,
Temo por teus caminhos!
Língua de ventríloquo,
Ínfimo é teu pensar.
Massa ignara, massa de manobra,
Confusa e abstrata
Que ao fragor da ola,
Aplaudem os carniceiros,
Arreganham os dentes e
Proferem ao ar insanas loas.
Assustadora é essa procissão
De azêmolas que segue a trilha do feitor.
Há sangue, ruína e terror
No sorriso disfarçado da face bush
Que sataniza o mundo.
Há fel na vaidade e no orgulho
Que se propagam das pirâmides
Dos cruéis faraós contemporâneos.
Penalizo-me dessa geração subserviente,
Sem massa crítica, incapaz de
Vomitar as aleivosias servidas
Em banquetes capitalistas.

VELÁRIO RASGADO

Caverna. Tudo horripila.
Escuta-se grunhidos de
Seres de asas tortas
Que brotam em profusão.
Voos desencontrados
Entre estalactites estagnadas.
Tudo enfeita a madrugada
Feia dos vampiros.
Em flash-back me atiro
Nesse calabouço.
É um ininterrupto pesadelo
Esse breu de túneis confusos.
Nada se espera do futuro.
A memória entra em curto-circuito
E abertos em rugas, os dutos
Denotam colisões insuperáveis.
Sem horizontes, a vida
É um circo de velário rasgado.

UM POEMA SEM SOFISMO

Meus pensamentos galopam
E me vejo debruçado à janela
Desertado da procela,
Em declive, das ilusões abdicado.

A tela que a vida me compôs
E uma equação de várias variáveis
E no complexo ilusório das paixões
Deixei meus sonhos libertários.

- Falhou! Diz meu coração vazio.
E se não fora esse tênue fio
A me ligar a esse real imaginário
Diria que fui um perdulário.

Construí muros e castelos
Transformei em oásis belos,
Paliçadas do meu deserto
E pus partitura no concerto
De uma vida que se queria
Um poema sem metáfora,
Sem azáfama e sem sofismo.

SOB OLHARES DO CÉU

eis que na casualidade um anjo divino
aparece do nada e vocifera labaredas
de fogo que se derramam dos ceus
sob olhares estupefato de deuses sem veus.

naquele lugar de desencontros
demônios se condensam em confraria
sob uma nuvem de fuligem
e anjos caídos professam hipocrisias
para deleite das conchas insones
que nada sabem dos sais e água benta
que lavarão aqueles impuros e inférteis.

sinais dos tempos obscuros aparecem
num céu de bolhas caolhas
enquanto o paciente Cordeiro
carrega sobre Suas costas o peso
da insanidade do mundo!

SOU AQUELE?

Sou aquele que passa
Pelos desvãos de mim
E vai pelas frestas
Escuso, cheio de arestas,
Com receio do fim?
Sou aquele que me nega
Os apelos que faço a mim?
Sou aquele que entre lágrimas
Arranca um sorriso de mim?
Sou aquele que passeia
Pelo bolso da calça
Buscando achados do tempo?
Sou aquele que se inventa
A cada prenúncio
De sibilinos ventos?
Sou aquele que busca
Cacos de cerâmica
Na ilusão de concatenar
Os fragmentos da vida?
Sou aquele que escuta
Os alaridos do vento
E se deita na contemplação
Das relvas umedecidas?
Quem me dera
Que meus medos falhassem,
Que minhas falhas quedassem
E meus muros morressem
E assim eu pudesse
Na mansidão do não ser
Demolir vestigios
De egos transfigurados.

HORA DO APOCALIPSE

Mísseis extirpam tripas
De anjos inocentes.
O mundo se maravilha
De bomba tão potente.

Crânios de homens voam
Nos ares de céu cinzento.
O general anuncia o sucesso
Aos quatro ventos.

Sem polvorosa a pólvora
Espalha o cheiro da morte.
Os jornais televisivos
Alardeiam sangrento combate.

Nos céus resplandece
Intenso fulgor
Espetáculo bélico
Produzindo horror.

Acordam as bestas confusas,
Sorriem as hienas obtusas.
O mundo escurece. É eclipse?
Será a hora do apocalipse?

ALMA VAZIA

Assim vazio como estou
Que poema se me insinua?
E essa idéia esquiva, quase nua
Diz-me de forma crua
Que meu mundo desmoronou.
Nada, nada me acalma.
Assisto o naufrágio de minh’alma.
Meu poema se quedou
E eu inócuo, quase morto,
Perdi o rumo, o porto,
Descarrilado, torto
Por errantes caminhos,
Sem encontrar meu ninho.
Só me resta a réstia da utopia,
Fragmentos daquilo que sonhei um dia.
Só me resta restos da anarquia
Que professei como sendo minha filosofia.
Só me resta as vestes, a fantasia
Que, palhaço, usei um dia.
Só me resta minha pobre poesia
A me acalentar neste mar de hipocrisia.

NO TRANSPARENTE

No transparente
Há uma obscuridade que não se revela,
Uma sombra, um rastro,
Um mastro onde tremula a mentira.

No transparente
Há alguma cor que perdeu a tez,
Há algum ser que em não-ser se fez
Ou um não-ser que assim se quis.

No transparente
Há um opaco submerso,
Há um verso pelo inverso,
Há um incerto como certo.
No transparente apenas aflora
A conveniência da hora

Por mais das vezes na transparência
Habita o embuste, por excelência!

DUROS CAMINHOS

Sou de caminhos de calhaus,
Não conheci repouso nessa nau
E se hoje ouso
Em idéias libertárias
E porque sou ave sonhadora
E vivo a iminência da fé de um novo Éden.

Meu sopro abafa sombras,
Aviva brasas no silêncio das estradas cruas,
Apaga velas de estrelas nuas
E as cinzas, transforma em húmus.
E no acúmulo das injustiças, se cansa
E explode portas irresolutas,
Desvenda hieróglifos indecifráveis,
Afasta mazelas que se querem eternas.
É essa minha luta!

OS HOMENS UTÓPICOS DO PASSADO ERAM ANJOS

Eram anjos apostólicos
Os homens utópicos do passado,
Cavaleiros de um reino encantado,
Querubins feitos de açúcar, alfenins
Sonhadores, soldados silenciosos!

E ciosos de suas missões
Extrapolavam o peito, aos rojões!
Despojados de pessoais ambições
Ateavam fogo em suas próprias vestes
E, incontestes, se doavam como as águas
No enleio de um turbilhão de ondas.

Nunca almejaram as honras
Dos Cavaleiros da Távola Redonda
E nem louvados foram em redomas
De flores perfumosas nas primaveras,
Ao revés,
Deixavam-se levar pelos
Redemoinhos de quimeras.

Mas eram outras eras
Pois no agora
Apenas ervas daninhas prosperam
Nesse vale inóspito de crateras.

IMPONDERÁVEIS SÃO OS QUE AMAM

imponderáveis são os que amam
e assim se faz necessário
porque arrebatadora e incandescente
é a força que se revela no seu vértice
e é nas cavernas vulcânicas que se lavam
aqueles que professam esse fogo extasiante.

amantes têm suas pálpebras embriagadas
para que não se lhes revelem
nenhum traço titubeante
do ente, do objeto do amor
e se deixem, com refrescante ardor,
ébrios, prisioneiros silentes,
como tochas cintilantes
a alumiar asteróides vagantes.

Assim,envoltos nesse mistério, é ponderável
Que sejam imponderáveis os que amam!

ROUPAGEM DO FUTURO

Houve um tempo de brio e honra
Em que as cobras se definiam
E seus chocalham se ouviam
Mesmo ao abrigo das sombras.
Sufoco de arames farpados. Cortantes
Em carne viva. Bailado de peçonha
Em transe enigmático. Sob um mundo
De mofo subterrâneo. Azedume
De cobras e mulheres traiçoeiras
Respirando um ar infestado de estupores.
Um silêncio que denota medo; temores
De que uma dizima periódica
Ou um loop infinito sejam
A roupagem do futuro!

DESVANECIDO

I

rasgo o céu rasgo o véu
faço um escarcéu.
busco brisa e brasas
me cai aos pés.
extermino traças
quebro vidraças
nas alamedas
irreverente cuspo
no assoalho
milhões de protozoários
me faço de aço
entro pro cangaço
me arremedo
de revolucionário
me enfronho nessa selva de pedra
já que nada medra
me escudo no escapulário
faço desse inferno o sacro
meu sacrário
roubaram meu espaço
me esquartejaram
quero meu espaço
meu espaço sufocado
a golpes baixos
cabisbaixo me querem
me querem esmarrido desanimado
me estilhaço
e faço dos meus versos
afiadas asas
me fortaleço e alhures desvaneço
miro meu rosto no espelho
miro meu rosto mergulhado
numa serena imobilidade
pintaram meu rosto?
em palhaço me transformaram?
bibelô de penteadeira,
é assim que me querem?
pois não me terão.
nem ontem nem hoje nem amanhã.
artimanha vã...



II

eis que o tempo conspira
me acalma a ira
me rouba o brio
me sinto óleo escorregadio
onde está o justiceiro?
onde está o revolucionário?
no anedotário?
vou mandar me embalsamar
a cara
colocá-la num outdoor
como fizeram com a cara de Guevara
o capitalismo fez dele
marca registrada
e numa arca seu retrato foi guardado
sou louco? serei o último tresloucado?
ouço o som das cornetas
das bombas explodindo
ouço vozes do proletariado
expropriado
enganado pelos poetas burgueses
o tempo secou a última gota
da esperança
as forças se anulam
bandeiras da equidade
já não mais tremulam!

PERCURSO INFINDÁVEL

Vejo-me aqui, vazio,
De olho na ampulheta.
Aranhas tecem suas teias
E eu descalço piso
Em rastro de escorpião.

O tempo sobe e desce montanhas
E os ipês amarelos
Esperam pacientemente o natal.
Minhas trilhas não se apagaram,
Resistiram às enxurradas.
Tantos janeiros calcificaram
Minha tez nestes caminhos de pedra.

Libélulas e borboletas
Sonham com flores da primavera
E isso me mantém
No céu claro de minha infância.
Uma eternidade é um sopro
Quando o chope está gelado.
Por que não nos acostumamos
Com os morcegos seculares
Que habitam as torres das igrejas?

MEUS PASSOS

Meus passos
patinam no espaço.
se faço, erro no compasso
se desfaço, não disfarço
o estardalhaço.
e assim me meto
em mil
mimetismos.
mastigo
maleáveis
malabarismos.
faço ou não faço,
eis o dilema.
acelero e transpasso,
ultrapasso
meus próprios passos.
num vôo imito
um pássaro
singrando o espaço
a minha caminhada
abraço.

SEM INSPIRAÇÃO

A estrofe que não termina
O verso que não germina
Tudo isso abomina
O poeta e sua rima
Preso a ritmo e rito
De uma poética mínima,
Tísica, raquítica
E assim minha mente
Outrora parabólica
Agora paralítica
Me faz sentir-me ermo.
Vem Castro, vem dos Anjos
Socorrer-mo!

MINHA VOZ NAS OCAS SOMBRAS

aroldo camelo de melo




Há um clamor que ecoa plagas,
Ignotos mundos, longínquas nebulosas,
Mas o tempo mergulha em sisuda surdez.
Se me indago ou indago a outrem
Meus queixumes quedam-se nas ocas sombras.
Penso-me sábio e incendeio meu espírito
De vaidades vãs.
Não me chega a contenteza e a tristeza
E uma chama ardente que me queima a alma.
Não me silencio. Quero inflamar meu discurso.
Sinto minha língua leve e sonora.
Porém, creio que algo em mim ainda não vingou.
Estou entre a trave e o travesso. Falta-me o amor,
Porque se amo, amo sem efervescência.
De minha mesquinhez tenho consciência,
Mas busco a sublime esperança
De me elevar ao pedestal da bem-aventurança!

VENDAVAL

aroldo camelo de melo


Foge-me à percepção
De me saber quem sou.
Já me disse anjo,
Mas um anjo nu.
Já me pensei
Poeta confesso,
Mas pelo inverso.
Já me vi filósofo um dia,
Mas filosofei a anarquia.
Só sei quem sou
Quando de ti estou perto
Pois meu erro tem conserto
E minha nau volta a velejar
Por águas mansas;
Nada me cansa
Nem me mete medo,
Dissipam-se os segredos
De minha vida oblíqua
E assim desnudo
Imploro teu sedoso manto
Que me aquece tanto
Neste vendaval.

ALEGRIA DA CHUVA

aroldo camelo de melo



Disseram-me que chove lá fora.
Não vi, mas senti o cheiro alegre
Que está a exalar mundo afora.
Sorri a natureza cálida porque
Chove sobre a grama pálida.
As corujas se esborrifam em aleluia
E acasalam-se à luz do dia.
É uma chuva miúda, tênues pingados,
Mas as árvores oblíquas do cerrado
Fosforescem com uma só gota,
São pingos sem efeito sonoro
Mas inebriam ávidos poros
E apagam a ferrugem das folhas
Que se revigoram do outono.
Pássaros lançam colcheias ao vento.
A natureza sob a regência da chuva
Entoa a sinfonia do lírico cerrado!

APAGARAM-SE TODAS AS LÂMPADAS

aroldo camelo de melo



Apagaram-se todas as lâmpadas.
Nada alumia minha esperança.
É vã a voz do vento
E minhas pálpebras cansadas
Dos meus inertes sonhos
Resistem ao tempo enfadonho.

Nada caminha senão
Por vias tortas,rudes
E sussurros balbuciados
Sob lençóis da quietude
São adágios inconfessáveis

Arfante o mundo desmorona
É frágil o arbusto
Que nasceu das pedras.

TEU CORPO É LUZ

aroldo camelo de melo




E é de ti que decorrem simultâneas
E transubstancialmente vibram
E antes que se dispersem me inebriam
Moléculas que pululam instantâneas.


E me oferecem ao roçar do vento
O sabor do vinho ou do salmão.
Aí se mostra em leque, em explosão
Teu corpo em total contento.


Numa mirabolante e sutil linguagem
De loucas piruetas circunscritas
Em imantada e imprevisível harmonia

Como um vertiginoso voo rasante
De um pássaro em sucessivas acrobacias.
E assim tua luz se faz incandescente!

EXTINÇÃO DO BEM

aroldo camelo de melo



Cuidar do espírito no Senhor
Que comanda leis e trombetas.
Ter a alma embriagada
Das benesses do divino amor,

E sentir o hálito da justiça
Divina que não profana
Fugir de tudo que se ufana
Longe do reino de cobiça.


Pois no princípio assim se fazia,
Mas o hodierno com tudo liquidou.
Agora reina a hipocrisia.

E assim se fez confuso labirinto,
Em tumulto a vida se transformou.
E o bem, da Terra, foi extinto!

ONDE SÃO VÃOS MEUS GRITOS

aroldo camelo de melo



Desço vãos degraus
De uma escada virtual
Sem fechadura
E submerso nos confins
Onde sufocam gritos
Meu verso é nota dissonante
Cambaleante
Num etéreo
Buraco negro
De incontidas
E descontraídas
Quimeras
Mundo onde gritos
De alerta solertes
São banidos
E fadados
A reverberar no vácuo
Indefinidamente!

SERENIDADE AINDA POSSÍVEL

aroldo camelo de melo


Disforme a linha do vento.
O tempo absorve um cálice de absinto.
Sem nome e sem rumor, a passos lentos,
O ar penetra incomunicáveis labirintos.
Uma densa sombra desliza sorrateira
Sobre olhos silenciosos e cabisbaixos.
Pela porta estilhaçada
Círculos de fogo se alastram
E nos seus vertiginosos vestígios
As chamas da turbulência desnudam cruéis czares
E só solertes abismos e seus azares
Afloram na plenitude de reinos opacos.
Redundantes são os alaridos ou mudos desesperos
Que ecoam no abandono das faces espessas e imóveis.
Reminiscências de uma existência verde e florescente
Ainda teimam nos sepulcros destroçados.
Olhos de um poeta vislumbram, inesperados,
Um facho de luz no entremeio
Das névoas imponderáveis.
Um fio luminoso pisca ao longe e sua nitidez
Na noite assombrosa aprofunda o despertar
De uma serenidade ainda possível.

NO TEU REGAÇO

aroldo camelo de melo



Em tuas curvas sinuosas
- ó estrada perigosa -
quero derrapar contente
quero deslizar macio
entre teus meneios
de fêmea no cio
Na tua escultura
de arcos romanos
beberei teu vinho
à sombra dos meus
páramos interiores
Nessa fantasmagoria
quero desfalecer
minha alma
e rejuvenescer-me
abastado de tua seiva
livre da lucidez
e dogmas perenes
de anjos caolhos.

MEUS HIATOS

aroldo camelo de melo



Espiono-te pelas frestas
De meus temerosos olhos.
Tua nudez estampada
Num vestido de cetim
Esvaziam-me as pálpebras
De imagens difusas
E tu, deusa bacante,
Em teu silêncio pétreo,
Transpiras suavidade
E me provocas alucinações
No planar de tuas asas de anjo.
O calor de teu rosto brônzeo
Acaricia meu peito desgovernado
E meu coração renasce
Num mundo fantasmagórico
E assim gongórico
No reflexo
Me glorifico
Em tua sombra imaculada.
Já não sou
Senhor dos meus atos.
Somente a tua imagem
É capaz de dissipar
A confusão dos meus hiatos!

SUNTUOSO HORIZONTE

aroldo camelo de melo



E assim o tempo me ensinou
Que és minha musa e minha deusa
E meu desejo por ti ferve a cada manhã.

Na lânguida limpidez de teu rosto
Meu olhar se incandesce e cresce
Meu sorriso de felicidade.

Minhas incoerências se aquietam
Na mansidão de teu colo
E planícies verdejantes
Se descortinam do teu solo.

Pressinto que és um oásis
No causticante deserto de meus dias
E esse rubro que o sol grava adiante
Parece um buquê de flores perfumosas
A construir meu suntuoso horizonte.

TALVEZ

aroldo camelo de melo



Talvez nunca escreva o poema que procuro.
Mas o que procuro não sei
Por mais que procure o enigmático no ser
O não-ser aparece na difusa opacidade das sombras.
O que vejo sob minhas pálpebras é ilusório
E o estuário à minha frente não passa
De chaminés chamuscadas, arranha-céus embaçados
Sob um plácido céu nevoento e cinzento.
Talvez nunca entenda o verdadeiro significado das coisas.
Mas qual o significado das coisas, se meu semblante
Muda a cada fase da lua, a cada lapso de tempo?
O que escrevo, deveria a contento, transparecer o amor
Com a pureza do translúcido líquido que escorre
Da alma de ingênuos anjos querubins.
O que escrevo, deveria a meu pensar, ser cálido
Como a névoa matinal que esfumaça da floresta.
Mas não! Ao revés, minha escrita revela um ácido que
Desbota fotografias e deixa a nu um mundo devastado.
É como se eu quisesse exorcizar a mim mesmo
E na minha abstração a existência não passasse
De um eclipse infinito e tudo mergulhasse nas sombras
Como desejo maior de meu espírito inquieto!

MEU ESPELHO

Aroldo Camelo de melo


Não quero que meu espelho
Me espelhe a verdade.
Quero que meu espelho
Finja como os poetas.
Quero que meu espelho
Faça de minhas rugas
Sinais de uma partitura
E disfarce minhas incontidas amarguras.
Não quero que meu espelho
Conte o tempo
Como um relógio suíço.
Que ele não faça isso,
Faça um feitiço
E amordace o tempo!

ALMA MADURA

Aroldo Camelo de Melo



A mim afluem sombras de silêncio.
A relva silente perscruta longe o dia.
Pensativo, o cão afina o faro
Atraído pela graça das garças que voam
Planando águas mansas do lago azul.
Que está a pensar o cão?
Será que voa com as garças?
Às margens, o bosque canta.
Os braços do vento me abraçam.
Estou diante de um dia claro e sereno
E este sol ameno me amorna a face.
Assim, pensativo, mergulho por águas turvas,
Por ruas estreitas de muitas curvas.
O que me espreita? O cão que me abana o rabo?
A garça que me meneia as asas?
A natureza que interroga sobre
Minhas ruminâncias submersas?
Ou é minha consciência nessa dança adversa,
No compasso de uma canção obscura,
Sob a bruma pálida no crepúsculo?
No íntimo do meu claustro
Há odores de flores e chuva de pétalas calmas.
Se me invento, invento meus caminhos
E nessa busca do aconchego do meu ninho
Pressinto que me amadurece a alma.

SOU UM CIDADÃO DO MEU TEMPO

Aroldo Camelo de melo


Sou um cidadão do meu tempo.
Mas qual é meu tempo?
Tempo da luz de candeeiro
Ou de navegante cibernético?
O tempo é acinético
E seus olhos não sabem
Dos ponteiros do relógio.
O tempo é uma invenção de si mesmo.
O tempo é atinente, referente,
E por si só não existe.
O tempo espelha, tão-somente,
Cada dia, insistentemente,
A luz do nascente e o ocaso do poente?
O tempo é lapso
Mas se para, é colapso.
O tempo é pó, posto que é etéreo.
O tempo é divino, posto que é eterno!

VALOR DOS TRAPOS

Aroldo Camelo de Melo

Aprendes a reparar nas minúcias
Porque elas nos dizem muito,
Mas não te demores demasiado
Em análises despiciendas.

Embora o céu levante suas âncoras
E seus sóis iluminem o fascinante cosmo,
Muitas vezes encontramos nas sombras
Nosso refúgio iluminado.
Os deuses vociferam seus medos do nu
Porém só na nudez é que reconhecemos
O valor dos trapos que nos vestem.

MINHA FÉ É FRÁGIL

Aroldo Camelo de Melo



recatado em meu quarto, a cama em desalinho,
sinto inebriante cheiro de mato e escrevo:
a natureza se exibe nesta manhã azul;
os pássaros gorjeiam graciosos;
os galhos se balançam preguiçosos.
eu não sei o que os movem, mas seja lá
o que for é uma energia que me equilibra
e mesmo que meus olhos mirem o espaço invisível
é risível minha fé ordinária porque vejo o sol,
escuto o murmúrio do vento e a língua do dia
se mostra sedenta de luz para dissipar ambiguidades
que porventura emudeceram noite passada.
Mesmo assim minha fé é frágil.
Não bastasse a cegueira que me acomete,
esse mundo oscilante me desvanece;
esse mundo balouçante o espírito me esmorece
e as asas de meus querubins que me acompanham
já se mostram lânguidas, extenuadas;
e toda essa obscuridade me rouba a liga da argila
e o cálice que me é servido arde-me nas entranhas.
O silêncio escravizante, a mim imposto,
descolora-me as palavras.
Só me resta me penitenciar de minhas fraquezas
porque pobre de fé não falo a língua dos anjos!

CANTO PÓSTUMO PARA MANGUEIRA DINIZ

Aroldo Camelo de Melo



Este posto poema póstumo para ti
É uma bucólica melodia que me chega em vibrações
Instantâneas, dispersas nas planícies cósmicas
E assim pode não se bastar da pureza mister,
Mas te oferece o ritual da dança reverencial
E o manto harmônico do que penso eternal.
Sei que tu és transcendente e tua ascensão
É como se teu espírito flutuasse na horizontalidade
E habitasse nas incandescentes fontes de luz
- O mundo dos demiurgos encantados!
Não posso te pensar matéria elementar
Porque o teu corpo transpira inebriantes poemas
E mesmo depois de tua partida meteórica
Para um mundo que não alcançamos,
Tua aura efervescente, pictórica
Flutua nas hostes supremas!
Eu só te penso querubim magníloquo
Porque vibram, voejam de teus poros
Labaredas de luz, lumes de vento
E se com o teu canto o teu intento
Foi nos propiciar terremotos extasiantes,
Tua missão entre nós, com galhardia, foi cumprida.

ÚLTIMO ADEUS

Aroldo Camelo de Melo
Para meu sogro, Antonio Bezerra



Vejo teus membros inertes
E me quedo triste e silencioso
Como uma folha no outono.

Vejo teu rosto e teus olhos
Que não me veem,
Tuas pálpebras cerradas,
Tuas mãos cruzadas,
Postas a abençoar o mundo.

Meu olhar vê tudo escuro
Na claridade destas moradas!

O tempo nubla minha face
E o obelisco se veste de branco
Para escrever a última linha
De tua briosa história.

Sobre o teu rosto
O silêncio se acomoda
Solidário com tua placidez.
Que palavras te dizer
Se elas tropeçam convulsionadas
Em minha laringe?

Meu olhar, o olhar meu
Enfim liberto da melancolia,
Te lança flores no último adeus!

UMA LUZ AINDA PISCA

Aroldo Camelo de Melo



O sol se põe e a noite é soberana.
Pirilampos festejam no escuro.
Com os olhos do mundo
um bacurau espreita silencioso.
Na superfície do nada
vagueia a imensidão e pensamentos
preguiçosos abrem parênteses
na vã tentativa de esclarecer
o nada posto em discussão.
Tudo é lento e inverso da luz.
Só o rosto de um solitário palhaço
fosforesce no picadeiro
a dizer que não reina a escuridão!

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

POEMA PARA AMÉLIA MARIA SOBRAL LOUREIRO

Aroldo Camelo de Melo


É um eco que vem de plagas distantes
E nos chega em delicadas e vibrantes sinfonias
Que falam de ti e reverberam tua personalidade
Impar na atribulada arte de liderar.
Tu és um ente em concórdia com o universo
E tu danças com desenvoltura nos salões da burocracia
Com a paciência de anjos anárquicos
E quando tu te fechas já engatilhas escotilhas
Por onde fluem luzes harmônicas e asas conciliadoras.
Se de tua boca só se escutem palavras
Doces como o néctar e teu olhar
Transpire ares, ventos solidários
Também, quando indispensável,
Vociferas fumegantes labaredas doutrinárias
Que pesam e calam fundo nas consciências.
Mesmo que o tacape do racional ordene
Teu coração é quem comanda tuas decisões.
Como um pássaro vertiginoso, tu partes
para o descanso, digna jubilação após árdua jornada,
Levando nos teus alforjes um pouco de nós
E deixando muito de tuas marcas indeléveis!

É RETILÍNEA A LÓGICA FEMININA

Aroldo Camelo de Melo



É retilínea a lógica feminina.
Embora em círculos, seus pensares chegam a Roma.
Às vezes frívolos, seus pensares,
quase sempre inequívocos,
são capazes de surpreendentes metamorfoses
na travessia de um diminuto lapso de tempo.
Não decido nada sem antes ouvir as mulheres
que se maquiam e maquiam a realidade com seus tons.
Quando as mulheres espiam o mundo pela janela
já decoraram seus ninhos com flores
e aromas primaveris
e se se mostram vaidosas, não se engane,
tramam pacífica e sorrateiramente
a tomada tempestiva do trono.
Raramente as mulheres sobem degraus de vento
e quando o fazem solidificam as nuvens.
Com sua capacidade de procriar, as mulheres
são como santuários ecológicos
e devem ser protegidas pelas leis do Universo,
porque são elas que enfeitam o mundo.

MEUS INSTINTOS

Aroldo Camelo de Melo




Controlar meus instintos animais, tento
Mas a força da volúpia é insana,
Invade, controla a mente, proclama
Seu império ao meu consentimento.

E eu, servo de impulsos bestiais, cedo.
Da sanha avassalante, sou acometido.
Rasgo o código da moral, embrutecido
E como um furacão em fúria, procedo.

Se não fora meu sincretismo religioso
A controlar pensamentos desregrados
Seria eu um devasso concupiscioso.

Busco apagar o incêndio disseminado
Pelas absconsas entranhas do colosso
Poder que persiste em mim arraigado.

SÃO MENTIROSOS OS MITOS CONTEMPORÂNEOS?

Aroldo Camelo de Melo


As pedras inundaram supostos paraísos
E silenciaram as arenas nababescas.
Duendes fantasiados de arlequim
Exilaram-se em seus céus de redoma.
Onde estarão as flores com seus odores?
Por onde andam os santos com seus andores?
Ouço vozes quebrantadas e escombros
Humanos se derramam pelas alamedas.
Cessou o tempo de milagres e os santos
Assumiram a identidade do barro que os fez.
A história esquartejou seus antigos deuses
Mas não deixou de fomentar seus mentirosos
E meteóricos mitos contemporâneos.

DESTE-ME A DÁDIVA DE RENASCER QUANDO NÃO ME FUGISTE

Aroldo camelo de melo




Deste-me a dádiva de renascer quando não me fugiste.
E desde então minha aura permanece luminosa
E sorri meu espírito enamorado pelo sibilar do vento
Pelo deambular dos astros.
Minha vida não seria assim vivida
Se não fosse teu sopro verbal
Tua sensatez
Tua silenciosa e enigmática arquitetura murmurante!

CURTO-CIRCUITO

Aroldo Camelo de Melo


Sinto muito
Mas cortaram
O circuito,
O ar fortuito,
O mar gratuito,
O vento arguto...
Tudo conspira,
O sol transpira,
A lua não mais inspira
Nada admira
O poeta delira
E de repente
CURTO-CIRCUITO!!!
Fechou-se o curto,
O certo é torto,
O torto é certo,
O verso é reverso,
Sem ritmo, sem istmo.
Chega de teima-teima
E, mesmo que eu não queira,
A luz se esgueira
E não alumia
Minha alquimia.
E lá se foi
A pedra filosofal.
Assim esta poesia
No nada flutua
E se afoga
Num mar de sal...
ALGUÉM, POR FAVOR,
PROVOQUE UM CURTO!
Sinto muito
Mas cortaram o circuito!
Isto é um contributo
À loucura universal.

BREJEIRA

aroldo camelo de melo

Ela bailava no fogo
De coivaras
E sua beleza faiscava
Feito relâmpago.

Em cada mão,
Em cada gesto
Seus trejeitos,
Seus encantos.

Seu suor
Era perfume
De flores do campo.

Seus passos
Adejantes
De saracura do brejo
Era o desfilar
Do néctar do sexo,
Puro vicejo.

CISNES DO LAGO

Aroldo Camelo de Melo

Os cisnes do lago bem cuidado
Do palácio do planalto brincam
De pique-esconde enquanto o bonde
Da história descarrila na esplanada.

JULGUE-ME PELO SOBRENOME

Aroldo camelo de melo

Como sabê-lo
Se meu selo é arte?
Como sabê-lo
Se não conhecê-lo?
Fique certo que
O que faço, destarte,
É com zelo!
E assim, faço um apelo:
Não me julgue pelo cabelo
Nem pela tez do meu pelo.
Se queres me julgar,
Julgue-me a essência,
Nunca pela aparência.
Julgue-me pelo sobrenome:
Camelo!

ANTANHO DESALENTO

Aroldo Camelo de Melo





É de antanho que o desalento
Cerra seus pesados crivos sobre sua fronte.
A labuta na aridez do tempo é penosa, atroz
E quase sempre se transforma num jogo sádico de pedras e fogo.
As labaredas cáusticas do dragão, no silêncio veloz,
Avançam no âmago de suas entranhas;
É quando os olhos do Infinito lançam jatos de espuma balsâmica
Aplainando encravadas arestas, desvendando ruidosos enigmas.
Os olhos de anjos caídos olham pelas frestas de pálidas
E nebulosas nuvens e seus olhares são projéteis venenosos
Que se não fora o arrimo dos ventos redimidos
Com suas línguas umedecidas da seiva divina
Desabariam cascatas inexoráveis sobre o paiol desguarnecido
E as sombras se eternizariam no recôncavo do Cosmos.

VERDES HORIZONTES

Aroldo Camelo de Melo


Se nuvem escura paira neste teu céu
E o silêncio principia tempos carrancudos,
Não temas porque as sombras se acalmam
Numa busca natural de um escudo
E se penteiam os asteróides com as brisas
Que de longe galopam mundos desconhecidos.
De outra sorte, se verde é teu horizonte,
Não deixes que a vaidade vã
Seja pérola cintilante aos teus olhos
E que no vagar do teu pensamento
Frutifique vestes de hediondos deuses encastelados;
Se te embriagares da sabedoria, fúlgida e transparente,
O teu espaço será o hálito sossegado
De bois ruminando nas espirais do vento
E teu sorriso fluirá ao ritmo dançante da brisa
Apaziguadora que campeia os verdes horizontes.
.

POEMA DA INSATISFAÇÃO

Aroldo Camelo de Melo


E estes tentáculos que nos auscultam
E estas ruas intransitáveis de meu século
Estes redemoinhos estes burburinhos estes pergaminhos
Esta fotografia esta hipocrisia
Esta burguesia esta asia
Estes atrozes estes mordazes tempos
Estes ares estes mares estes pares
Dispares e fugazes
E estes lupanares que nos fervem e corroem o sangue
E estes rios poluídos que se mostram exangues
E estas horas pálidas que se arrastam lentas
E esta lâmina sangrenta
Esta faca afiada de dissabores
Deus, livrai-me destes
Livrai-me destes horrores.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

MANHÃ

Aroldo Camelo de Melo


manhã
página virgem onde flores desabrocham.
o hálito da noite umedeceu a relva
no silêncio cintilante dos céus.
meu sangue ancorou no porto
de sonhos fluidos e tine e retine
visões diáfanas grafadas em minha retina.
avalanche de idéias jorra de meu cérebro navegante
que em tons ora graves ora agudos
dança e contradança na busca de uma voz silente
que o conduza à porta escancarada do mundo.

no espaço fantasioso há um aeroporto onde pousam
naves alienígenas de onde emergem
pássaros empalhados heróis de cera
a decorarem museus medievais palácios de areia
e o eu-menino se contagia dessa energia interplanetária.

tudo é ficção na adolescência do dia e a manhã
me acena e me sorri borrifando o ar com seu perfume.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

AUSÊNCIA SENTIDA
Aroldo Camelo de Melo


A tua ausência sibila como o vento
E minhas pálpebras insones
Auscultam teu nome

Noites e noites enevoadas
Repletas do vazio do teu corpo
Reverberam o teu ressonar.

Ecoa em tons suaves
Palavras inacessíveis do meu sonho
E sinto teu sopro
Sussurrando inebriante bálsamo
No encanto envolvente da atmosfera.

Como domada fera
Me refugio solitário
Em meu leito sacrossanto
E, imantado, meu murmúrio
Em terna permanência
Desperta na combustão
do teu hálito.

AINDA NÃO É TEMPO DE MORRER

Aroldo Camelo de Melo


A noite dormita na algidez da madrugada;
O vento bafeja ares de lâminas afiadas
E das sombras enevoadas surgem
Bêbados espectros em passos trôpegos
A se confundirem em seus paradoxos.

Tudo converge para máscaras conspiradoras
E o tempo intangível constrói paliçadas no espaço
Enquanto o futuro é demolido pelos cavalos alados.

Vergam os elos que amalgamam o mundo.
Como fingir que não vemos os restos
Trucidados dos acontecimentos? Esvaziaram os cântaros
Da esperança. A estação dita a desordem dos ventos.

Mas a noite não se perpetua e a manhã surge ancorada
Pelos filetes de luz de um tímido sol. A natureza
Ainda sorri, pouco importa os tubarões com seus úberes
Inflados de plutônio. Não! Ainda não é tempo de morrer!

DO MÁGICO INSTANTE

Aroldo camelo de melo

Semear sementes ávidas de vida pelos campos,
Inebriar palavras do amoroso vinho
E sob uma chuva tênue de afagos
Agasalhar-me na calmaria do teu compasso.
Respirar teu odor, compartilhar teu espaço.
Tudo teria ares de eterno em ritmo pulsante
Já que o tempo congelaria no mágico instante
Em que a flor de lótus descerra suas pétalas.
Assim, eu seria um colibri a sugar teu néctar.
Assim, eu seria um embrião germinado pelos ventos
E repousaria meu cansaço e saciaria meu desejo
No aconchego inebriante de teus braços.

A NATUREZA É JUSTA

Aroldo camelo de melo

Com as mãos sobre o teclado do meu computador
vou dando vazão a tudo que brota na memória
e minhas palavras ressoam sussurros de minha alma
sob uma ventania de sílabas que desabrocham
de um clima aziago que me estremece as entranhas.

Talvez a claridade do vídeo não saiba dos escombros
que se escondem pelos becos do carpete infestado de ácaros
e as pessoas que me circundam, alheias e felizes,
não entendem a peçonha derramada pelos deuses de barro.

Escorpiões deixam a nu, em movimentos turvos, o ódio cego
por aqueles que não circulam pelos seus pântanos
e herméticos em suas couraças, constroem palácios de soberba
em suas parvônias, mirando holofotes incandescentes
numa ânsia tresloucada de se tornarem imortais.

Tolos, pensam que se protegem da justa natureza
que dia após dia vai ceifando silenciosamente seus artifícios
enquanto lavra a fatura atroz que lhes será debitada.

A ELEGIA DO MEDO

aroldo camelo de melo



Quando a língua muda silencia
E o medo suplanta o medo
E tudo pesa como sombras
De um velho castelo medieval.

Quando na veemência cega, incorrigível,
nada mais faz sentido nesse chão
e é chegada a hora da fuga
antes que se desate o nó da covardia.

Quando demolirem os alicerces do torpe
E derramarem ,aos borbotões, pelas alamedas
O sopro de fé e de esperança e feneça
Na escuridão a força dos deuses impostores,

Incontida será a dor que emergirá das sombras
E tudo desembocará no côncavo do nada
E as vibrações de justiça reverberarão
Pelas espirais dos templos inamovíveis.

Quão obscura é a vida quando o disforme
Mergulha nas roupagens da lei venal!

PAZ DOS MORTOS

Aroldo camelo de melo


Pulcros sepulcros
De mármore branco,
Alamedas silenciosas,
Cruzes que disparam olhares
E das alturas
Anjos com suas asas
Curvadas, em plumosas
Roupagens,
Entoam cânticos
Que só os que habitam
Aqueles silentes mausoléus
Escutam.
É quando
No lusco-fusco da tarde
Dou-me conta
Da paz infinita
Que a morte
Nos proporciona.

DEUSES NUS

Aroldo Camelo de Melo

Ousei questionar deuses nus
que se adornaram de véus
maculados do trivial
E bradaram de seus lábios
bramidos sedentos de furor.
Apontaram-me o deserto
onde queriam me exilar
e sob o jugo do azorrague
pensavam decepar-me a córnea,
pensavam cortar-me a língua,
pensavam silenciar-me o cérebro.
Em vão, pois o amanhecer
não desfolhou meu corpo
e o céu noturno com seus
luminares incandescentes
trouxe-me o ouro e a prata
que o deserto me furtou!

CAMINHOS SOTURNOS

aroldo camelo de melo



me deleito esmiuçando
páginas de um livro desbotado
que dormitava na estante
e por um instante
me senti Augusto,
poeta vetusto
que me doutrinou
com suas cismas, cinzas e sinas
da melancólica humanidade
envolta em suas trilhas
de rastros noturnos,
caminhos soturnos
da hipocrisia!

DESESPERANÇA DE POETA

Aroldo Camelo de melo



Respirar carbono por trançados dutos
E dizer garbosamente que é cosmopolita.
Residir cubículos de fuligem, mergulhado
Em estado de torpor ou de vertigem,
E pensar que vive no cimo da cultura,
É ter perdido a censura
E já não sentir o bálsamo que exala dos férteis campos.
É ter perdido o espectro,
Ofuscado pelas luzes da urbe,
E não vislumbrar a candidez de astros e constelações.
Por onde se perdeu o timoneiro e sua embarcação?
Desassossegado e qual um chacal perambulante
Pelos pântanos encharcados está o homem
E já não escuta o silêncio que ressoa no Cosmos.
Um grito de alerta vem dos poetas saltimbancos.
Será o grito do poeta um grito de insanidade?
E sua desesperança o ronco de um imaginário tresloucado?
O poeta e seu farol de palavras já não alumiam o mundo!

EM PALAFITA DE VIDRO

Aroldo camelo de melo


Em palafita de vidro,
Aquário refrigerado, vivo
Refugiado num quadrado.
Meu espaço é diminuto
E meu contributo é quase zero.
Seminu me deixaram.
Minha fala não faz sentido,
Soa obscura e nem reverbera.
Vã é minha espera. Sem agasalho
Nos dias enevoados, sinto frio.
O tempo e seus destroços
Me soterram.
Quando venta no meu mundo
É tempestade de areia.
O sol lá fora brilha!

ANJOS INCENDIÁRIOS

Aroldo camelo de melo


como quem aspira outros céus
isenta de pecados
minha alma passeia pelo convés
quem sabe talvez
buscando sua alma gêmea
enquanto meu corpo
em brasa
de casa em casa
vai colhendo migalhas de perdão
e minhas lágrimas lavam o vento
e minha retina anuncia
as cores de um arco-íris
esculpindo meu caminho.

acredito na benevolência dos anjos
que são almas lavadas no sal da castidade
e se os anjos de Rilke são hediondos
é porque são anjos que habitam
céus impuros.

eu conjugo e esconjuro
os versos de um poeta cético
e vejo as cores da medula celeste
que veste predominante escarlate
para receber impropérios de anjos caídos.

é um vitupério o reverbero dos olhos que nos espreitam
e das entranhas de infernos abandonados
derramam-se vozes incendiárias
que não conseguem queimar
os caminhos das procissões celestes!

NOITE DA ESPERANÇA

Aroldo Camelo de Melo


Solitário perambulo. E são tantos os caminhos!
Vezes, à sombra de árvores decepadas, repouso.
Quedo. Calado. Vejo fúria, espanto nos olhares.

Mesmo que o horizonte seja só deserto,
Escuto o marulhar de águas. Hipnótico, adormeço!
A repugnância, a indiferença manifesta, esqueço.

No silêncio, um grito entranhado. Desperto.
É madrugada e a esperança bate a minha porta
E acorda meus anseios, meus sonhos incertos.

Embora o sono atravancado, minha alma descansa.
Brilha nos céus a Vésper. É maio e o céu dança.
O ribombar das sinfonias de Beethoven, que escuto
Em pensamentos, enriquece a noite da esperança.

TEU FULGOR

Aroldo Camelo de melo




O teu fulgor alucina-me a alma.
Do teu exalante feromônio,
Inebriam-se meus embriagados hormônios.
Ascende-me um fogo efusivo
No candente contato com teu corpo.
Envolto em tua campânula, mergulho teus mares
E respiro ares afrodisíacos numa atmosfera
De um prelúdio lascivo, voluptuoso.
As luzes da manhã colorem o orvalho translúcido
E a eterna primavera de teu colo desperta
A amplitude plena dos meus desejos.
És um prodígio que cura minhas incoerências
E assim me afogo e me incendeio em tua fulgurância.

SOBRE O CONCRETO E O VIRTUAL

Aroldo camelo de melo


Que pode o poeta
Além de metáforas?
Qual a meta do verso
Se a estrofe extrapola
O congruente e o incongruente?
No sentido inverso caminha
E tropeça nas reticências, o poeta.
A palavra sem verbo
Já não é mais substantiva,
No concreto esmagaram o verso
E o poema se fez virtual.

O QUE ESCREVO

Aroldo Camelo de Melo


O que escrevo nasce de cometimentos
irrefutáveis que pululam em minha mente.
É na profundeza do nada ou do todo,
pois que não defino,
que se amalgamam os vocábulos,
a buscar sentido,
no intuito de fugir da banalidade sorrateira,
de fugir ao alienamento da vã realidade
que lhes rodeiam.
Assim, transcende-me o poema.
Ganha alma e sublima-se
na atmosfera, numa fruição prazenteira,
no anseio de independência irrefreável
da expressão escrita.

ACHEGA-ME COM TUA EMANAÇÃO VOLÁTIL

Aroldo camelo de melo


Achega-me com tua emanação volátil inebriando-me
E provocando-me como uma fêmea no auge do seu cio.
Teu calor coagula meu efervescente e rubro sangue
E lavra meus lábios com tua saliva cósmica.

Achega-me com tua volúpia silenciosa e me desnuda
O corpo como a procurar um diamante lapidado
Escondido nas reentrâncias do incontido.

Quero mais que tudo ouvir teu balbucio, sentir o tatear
De teus olhos que me penetram como um fluxo nuclear
E faz meu desejo um oceano transbordante de ternura
E assim eu sinta e deguste avidamente a candura
do viver entrelaçado nos teus braços.

COMO UM GARIMPEIRO INCANSÁVEL ESTOU

Aroldo camelo de melo



Como um garimpeiro incansável estou.
Estou como se o mundo silenciasse
E uma interminável onda galopasse
Indefinidamente.
No entanto estou só nesse céu incoerente
Cavando barro peneirando vento
E as pedras mudas querem me falar
Pois sinto a fisionomia interrogativa
E o cheiro esquelético no horizonte.
Perdi os vestígios dos caminhos.
Permaneço sem palavras como um batel
Peregrino a singrar águas revoltas.
Mas como um garimpeiro incansável estou!

OS HOMENS SÃO FRÁGEIS E INÁBEIS

Aroldo camelo de melo


Os homens são frágeis e inábeis;
Tudo que fazem agride a natureza
E desmantela as dobradiças do céu.
Penteiam-se e se maquiam
De fantasias vãs
Depois saem a desfilar
Nas passarelas de vento.
Estultos, blasfemam aos quatro cantos
E se pensam semideuses
Mas seu fulgor se apaga
Numa cátedra rasa de poucos côvados;
Quadrúpedes não se penteiam
E nem se maquiam
Mas nas suas ruminâncias mudas
Dizem-se e se fazem harmônicos
Como suas irmãs orquídeas coloridas.

PÔR-DO-SOL

Aroldo Camelo de Melo




Contemplo o vasto e calmo estuário.
Margens consteladas por manguezais e caranguejos.
No silêncio da tarde o sol vermelho ondula
As águas no movimento das marés.
Tudo ao redor imóvel. Séculos e séculos, imóvel.
Insondável, o vento passeia.
Aproxima-se o espetáculo fulgurante.
Meu semblante se aquieta envolto
No som voluptuoso do marulhar das águas.
De declínio em declínio o sol se despede do dia.
Acaricia, beija o rio no horizonte.
É clara a sensação de felicidade intensa.
O sorriso das águas é múltiplo e a natureza por vezes
imponderável
Germina um tempo de fluidez.
O bolero de Ravel espoca no ar.
É o pôr-do-sol na terra dos tabajaras.

SUBSERVIÊNCIA DOS LACAIOS

Aroldo Camelo de Melo




Não encontrarás em mim
A subserviência dos lacaios
Nem a polidez bajulante
Dos que operam esterco pegajoso.
A estes, lanço versos de repúdio
E se derramo algo, são lágrimas de sal
Sobre seus túmulos.
Penalizo-me dessas ignotas criaturas
Que se acovardam ao som
Das frouxas flatulências
E se arrepiam com suas próprias sombras.

VOLÚPIA RESSURRECTA

Aroldo Camelo de Melo



Em franca erupção
Minha volúpia escapa
Pelas frestas secretas
Do meu íntimo.
Em vão tentar freá-la,
Cerceá-la.

A volúpia é libertária.
Seu mundo é o azul
De um céu vazado
Onde o instinto galopa sem medo.

Ao revés,
Exilada nesse mundo cego,
Minha alma se abstém de pecados,
Submissa a preceitos e preconceitos.

No entanto a fera é indomável,
Arrebenta as amarras,
Rompe o lacre fabricado,
Extravasa o peito,
Ignora, leva de eito,
Quebra o pacto secreto
E irrompe ressurrecta!

terça-feira, 1 de setembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

Aroldo camelo de melo

Lá estava a casa
Das vertentes de minha alvorada!
Estrelas reluziam no meu ceu.
Refletiam os espelhos da lembrança
As sombras adormecidas.
Um turbilhão irrefreável de melancolia
Derramou-se sobre mim.
Como que atraído por um imã descomunal,
Quis adentrá-la!
Convite? Cuidei despiciendo.
Afinal, eu não era um ignoto,
Vez que conhecia seu reboco,
Seu piso, seu telhado.
Aquela casa não poderia dizer
Que não me conhecia.
Nem ela nem ninguém
Debaixo de seu teto se atreveria!
Queria ver meu quarto
Onde sonhei uma eternidade
Que se eternizou.
Queria rever meus sonhos,
Compará-los com a realidade
Do que hoje sou.
Será que me afastei tanto de mim...?
Queria rever meu pai, minha mãe, meus irmãos,
Todos sentados em volta da mesa,
O cuscuz fumegando, a água borbulhando na chaleira,
O café lançando seu aroma além fronteiras,
Meu irmão Moacir declamando com zelo
Augusto dos Anjos, Castro Alves
Ou um cordel do tio Zé Camelo!
De repente, senti um calafrio. Medo do vazio!
E se não existisse
Nem mais rastro do que se foi?
E se deformaram e saquearam meu templo sagrado?
Estupefato, dei-me conta de que é impossível
Cruzar a barreira do tempo.
Meu Deus! Como estou velho...
Meus sonhos se perderam
Nas encruzilhadas da vida!

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Busquei por todas as ruas desta cidade crua

Aroldo camelo de melo

Busquei por todas as ruas desta cidade crua
um mundo por mim imaginado,
um mundo que não se conhece e nunca se conhecerá,
um mundo liberto da insanidade dos céus,
da insanidade do tempo, da insanidade dos homens.
Mas como seria esse mundo sem a insanidade
dos deuses, sem a insanidade dos homens
e a lucidez grassasse com sua obviedade como epidemia
por todos os espaços obscuros, por todas as mentes
pagãs, por todas as mentes satânicas?
Quem poderia estancar a orgia das sombras
se a infinitude do tempo se reduzisse
à linearidade cartesiana das mulheres de Atenas?
O que seria dos beatos e ricos de fé
se os iconoclastas, como um terremoto vertiginoso,
decretassem a morte de todos os santos de pés de barro
e erguessem no mundo a tirania dos impiedosos?
O que seria dos heréticos se a verdade dos compêndios sagrados
se estabelecesse inequivocamente e o Cordeiro, enfim,
conforme a promessa, resplandecesse nos céus?
O que seria dos poetas sem essa santa sanidade
E insanidade de tudo que concebemos ?

Torrente de Desenganos

Aroldo camelo de melo



Nas vias congestionadas carros expelem fumaça.
A negra fuligem sombreia os edifícios
E os homens em cubículos giram
Suas cabeças desordenadamente
Ao ritmo da gangorra da bolsa de valores.
O ar que se respira tem fétidos odores
E se a vida ainda lateja algo de serenidade,
Devemos isso à algazarra dos urbanos pardais.
Num reflexo miro a paisagem que vai tomando
Rosto do célebre “inferno de Dante”.
Aqui se aprende que há manhãs, noites e madrugadas
Em que o limite da sanidade atinge seu ápice
E se esgarça a linha tênue que separa a lucidez da loucura.
É quando nos perguntamos se somos livres e
O que isso significa. Será que o mundo
No qual habitamos ainda reconhece nossa alma?
Há uma sensação de inutilidade que nos rodeia
E os ventos errantes se condensam em anéis imaginários
Esperando nas sombras os reflexos da hora instável.
Os vocábulos giram num carrossel frenético,
Incapazes de exprimir o caos funéreo.

APARÊNCIAS

Aroldo camelo de Melo


Percorro meandros intensos das idéias
E descubro tantas interrogações.
Respondo com perguntas a mim mesmo.
É necessário burilar o pensar
Para desanuviar os abismos da vida.

Por ótica fecunda, quedo meus gládios
A matutar sobre a linguagem das pedras.
Se observo as formigas, constato que a mim
Só provém pobres idéias.

Pois que é tempo de sombras
Tenho que trafegar lentamente
Por labirintos salpicados de pólvora.
Pois que é tempo de cobras
Tenho que buscar abrigo
Nessa soturnidade, nesses ínvios caminhos.

Meu poema necessita falar todas as línguas
Na caça fremente de elocuções proféticas.
E se não falo o idioma dos anjos
É porque não me permite a hierarquia divina.

Necessária visão minuciosa e inspirada
Para distinguir o joio do trigo
E se o olho do mundo
Me espreita com olhos profundos,
Cogito para que não me ofusque
Com o falso brilho de estrelas alvadias.

NOITE BOÊMIA

Aroldo camelo de melo


Noite ruidosa de guitarras roncando rocks.
Mescalinas e seus afins pintavam-na de azul.
No cenário psicodélico
Saltitavam parafusos e pirilampos
Numa dança impregnada de negrumes de fumaça.
Tudo envolto num ar nauseabundo,
Poluído pela nicotina e outros dejetos usuais.
O negro preponderava nas paredes e nos trajes.
De um canhão luminoso, uma luz esverdeante
Imitava papagaios em estado alucinante.
Olhava as imagens com olhar decrépito
E tudo me parecia extravagante.
Decibéis espocavam no ar,
O som lancinante, como língua de fogo, ardia
E a noite adolescente prometia.

SEPULTO DAS IDÉIAS

Aroldo camelo de melo




Só barulho ao derredor.
Eu aqui com os dedos no teclado
E a mente alucinada em busca de palavras.
Um povaréu de ruídos corrói meus versos
Que se transmutam em natimorto.
Tento escrever frases no vazio desta página
Mas meu grito se faz vácuo
E no atrito dos sons se despedaça
A idéia desfigurando o corpo do poema.
Exaspera-me o matraquear intermitente das gralhas
E as palavras despencam num abismo profundo.
Meu silêncio cabisbaixo se recolhe
E minha sede literária é sepultada
Em túmulo de pedra.

E DE TANTA LETARGIA

Aroldo Camelo de Melo




E de tanta letargia desmorona
Os laços da paixão outrora ardente.
Desconcêntrica, a seiva aromática
Do amor evapora-se e os caminhos de pedra
Solidificam-se nas reentrâncias da mente.
No repouso deliberado e progressivo,
O sentimento fez-se combustível
Que perdeu a substância energética
E as pálpebras em estado de torpor
São lâmpadas de filamentos partidos.
A negação, a renúncia do desejo
É um prelúdio do adormecimento da partitura
de uma canção que se esvaiu no tempo.
Tudo é ausente a quem habita o silêncio da vida
E as sombras se alongam indefinidamente
Entorpecendo o tempo que, sereno,
Permanece sem flexão na cadência
Nostálgica e remota dos séculos.

EXEMPLO DE HUMILDADE

Aroldo Camelo de Melo



Todo dia um porco vai àquela porta.

É parca e pulsa sua cauda em S.

Alegre, o porquinho esquece

Que provoca asco e revolta.

Que importa? Indaga o porco.

Quero mais do que o focinho na lama,

Que se canse aquele que reclama.

E embora estafado do menosprezo,

Acossado e banido como peste,

O porquinho se doa inconteste

E em roupa e sapato de madame

Se traveste!

MORTE E SEPULTAMENTO DE TRISTÃO

Aroldo camelo de melo



Sentados à calçada,
prosam os homens
palavras amiúdes.
Passa na rua
singelo cortejo.
Sem sol e sem lua
alguns piedosos
e três tristes cãos
carregam ao sepulto
O ébrio Tristão.


Em sonoro coro,
sem ferir o decoro
deitam a cantar:
lá se vai Tristão,
sem choro nem vela,
um bom coração,
um vento na procela.


Lá se vai Tristão,
já mudo e sisudo,
sem discurso ou bravata,
sem paletó e gravata,
embebido de aguardente,
sem oração clemente.



Não deixa herança
nem viúva a chorar.
Sem conta bancária,
nenhuma hipoteca.
Sem conta a pagar
e um livro apenas
de antigos poemas
ficou a dever
na biblioteca!


Seus feitos em vida
(de pouca valia?)
não serão recordados,
ficarão nublados
em sarcófago fechado.
E agora, à sua revelia,
serão sepultados.


E assim, sem delongas,
já que lhe foi breve a vida,
despediu-se Tristão
deste mundo feroz,
onde não teve guarida.


Seu esquife liberto,
agora altivo e veloz ,
sem ninguém por perto,
voou qual albatroz.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

QUANDO SEREI O SER QUE CONCEBO E DESCONHEÇO?

Aroldo camelo de melo

Quando serei o ser que concebo e desconheço?
Acaso o ignoto é tão-somente invencionice
De maquinações cerebrais?
E se existe, habita labirintos de mundos alegóricos
Fulgurando no espaço fantasmagórico?

A urgência do mundo isola o homem numa masmorra egoísta
E seus impulsos exteriores se chocam com filetes
De consciência que ainda restam nas concavidades
Profundas do inextinguível dos seres.

Se não me é dada a compreensão de mim mesmo,
Como exprimir minha verdadeira identidade?
Como saber se o que penso construir
Não é ficção do que irrompe da página invisível
E se projeta no espaço incandescente da memória?

São vãos os murmúrios que me chegam
Dos meus recônditos anônimos
Pois que exprimi-los seria atear fogo
Num paiol de desconhecido e misterioso calibre.

Melhor retomar o silêncio e deixar que as palavras
Aleatórias quiçá desvendem o improvável do que somos
E escancarem o absoluto, o irredutível, o enigmático
Que, enternecidos, guardamos dentro de nós.

domingo, 23 de agosto de 2009

DEUS EXISTE

Aroldo Camelo de Melo



Já não se ouve o murmurar das palavras.
Soçobraram na avalanche do tempo.
É opaca a pátria dos deuses de barro.
Tudo se apaga na futilidade e na incoerência
Tosca que reina entre os homens.
Que a claridade se revele sobre esse templo de sombras
E minhas palavras não desemboquem num buraco negro.
Infinita é a distância que nos separa, mas ao piscar de olhos
Me vejo diante da face oculta do Deus do Universo.
Ele nos espreita com seus olhos de silêncio.
Tudo em desequilíbrio e a perfeição do cosmos nos assusta.
Não, não vos preocupeis em demasia. Esse caos reinante
Entre os homens faz parte do concerto.
Quem tem ouvidos que escute porque Deus sussurra
E no imenso azul do silêncio cósmico é que se manifesta
Seu poder. Desvendar esse segredo é dádiva de poucos!

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

ROGO QUE O TEMPO NÃO ME ROUBE MEUS ARROUBOS

Aroldo camelo de melo


Rogo que o tempo não me roube
Meus arroubos e eu não me desmorone
Numa caminhada vacilante.
Meu frêmito já não se escuta e o fogo
De minhas lamparinas anda rodeado de cinzas.

Não que eu sempre tenha sido furacão,
Mas também nunca deixei que os declives
Esmaecessem a luz verde que ascende minhas idéias.

Essa luta que eu lutei tinha-a fluindo
No meu sangue,
Era oxigênio latente em minhas veias.
Essa herança armipotente advém de meu mundo ferido,
Moldado pelo cruel cinzel da desigualdade e da injustiça.

Não, não me permita, Senhor,
Que essa nebulosa estrepitosa, extenuante,
Paire indefinidamente sobre meu céu
E que eu volte a respirar o hálito libertário
Que sempre irrigou minha razão de existir.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

DEGUSTO TEU ORVALHO DÚCTIL
Aroldo camelo de melo

degusto teu orvalho dúctil
e bebo da vinícola do teu corpo.
sinto a maciez dos raios da lua
quando teu olhar me penetra.
teus movimentos rítmicos
é como a oscilação de um pêndulo
a marcar o compasso da minha alegria.
não quero que o tempo desfaça esse mistério
e o sol não se ponha enquanto tua luz me irradiar.
ergo as mãos aos céus numa prece infinita
para que não cesse essa luz vermelha
que é sangue para minha existência.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

UM POEMA DE UM POETA DESCONHECIDO

Aroldo Camelo de Melo

Um poema de um poeta desconhecido
De versos enigmáticos de versos metafóricos
A rima a métrica a densa e reveladora imagética
A energia cinética das palavras a murmurar
A cada sílaba um sonho um desejo um pensar
E o náufrago das letras a se afogar na luz intensa
Ou na penumbra dos vocábulos
E todos os homens estupefatos com aquele solitário
Verso de um poeta solitário de quem só se escuta
A voz anônima a canção de amor
O grito inaudível o soluço triste.
Nada faz sentido ao ignaro e só o silêncio compreende
O não sentido do verso o não sentido do poema
O silêncio com sua voz tonitruante
O silêncio fugidio que não se define
O silêncio com sua nudez no corpo do poema
E todos os versos que se seguem mergulham
Nessa infinitude incompreensível
E a voz do poeta sem submissão
Numa inexplicável obstinação
Ultrapassa caminhos obtusos e se encanta
Num ponto desconhecido onde os enigmas se entendem
Onde as metáforas perfeitamente se conjugam.
Sua voz que grita um grito puro um lamento
A voz que ecoa num deserto de homens sem língua
A voz que chicoteia reverbera no mundo dos surdos
A voz que depois que sai da boca do poeta
Não é mais de ninguém, nem dele mesmo
É somente a voz do poema que se apropria
De sua própria existência e só o acaso definirá
Sua pretensão primordial.
E é só um poema de um poeta desconhecido.